Mapeando o património cultural do Cabrinha


Terceiro exercício do processo de mapeamento desenvolvido pelo Outros Campeonatos no bairro Quinta do Cabrinha.

 

Neste exercício, quisemos conhecer as formas de expressão cultural do bairro. Como tal, foi envolvida a comunidade do Cabrinha. Cada participante devia indicar no mapa do bairro formas de expressão cultural desenvolvidas, quer individual, quer coletivamente, segundo sete categorias: artes, costumes, saberes e ofícios, crenças, instituições, objetos e edifícios. O grupo de participantes foi caracterizado através da sua idade e género. Em baixo a legenda dos símbolos utilizados.

 

 

Foram obtidas as seguintes respostas:

 

 

Análise descritiva das respostas

Artes: 18 respostas

As seguintes disciplinas artísticas são praticadas localmente:

Artesanato/ trabalhos manuais – são referidos vários e várias habitantes com bastante habilidade para produzir este tipo de objetos, muitas vezes através do reaproveitamento de materiais, tais como, latão, madeira e afins.

Música – o fado é bastante popular no Cabrinha (sobretudo entre os mais velhos), havendo localmente pelo menos um cantor e um guitarrista de fado; há na comunidade uma criança que está a estudar violino.

Gastronomia – é dada grande importância ao tema da comida, e é referido existirem bons cozinheiros e boas cozinheiras no bairro; quanto às especialidades, estas vêm normalmente da cozinha tradicional portuguesa (e.g. carne de porco à alentejana; arroz doce).

Dança – existe um grupo que é dinamizado por uma instituição local.

 

Costumes: 13 respostas

Verdadeiros alfacinhas, os habitantes do Cabrinha dão grande importância aos Santos Populares, e sobretudo ao dia de Santo António. As atividades desenvolvidas no âmbito destas festas são:

  • participação nas Marchas Populares de Lisboa;
  • organização de atividades desportivas pelas coletividades;
  • realização de uma festa de bairro (arraial), com música popular, bailes, comes e bebes, geralmente organizada também pelas coletividades;
  • visita da marcha de Alcântara ao Cabrinha, com uma volta inteira ao bairro.

Também é referida a participação da comunidade na procissão das velas, realizada a 13 de maio, com a mesma a passar por dentro do bairro; os habitantes do Cabrinha  aproveitam essa ocasião para colocar velas na Avenida de Ceuta, no local onde faleceu, no passado, um membro da comunidade.

Também foi referida a importância do Ano Novo, em que a comunidade se encontra nas coletividades para os festejos.

Um outro costume refere-se ao tipo de linguagem utilizada no bairro: o vernáculo é muito usado, sobretudo nas coletividades (já vem do Casal Ventoso, mas diz que aqui é pior); é usado tanto no espaço público, como no seio familiar; também se utilizam alguns termos próprios, que vêm ainda do tempo do Casal Ventoso, tais como, conta-horas (relógio), tirante (fio), parro (relógio), faz-barulho (pistola) ou anilha (anel).

 

Saberes & Ofícios: 10 respostas

As profissões mais comuns na população do Cabrinha são o trabalho na construção civil, limpezas ou motorista. É referido que as pessoas do Cabrinha são, na sua maioria, pessoas “desenrascadas”, que sabem improvisar. Exemplo disso são as hortas que existem nas traseiras do bairro, construídas e organizadas pelos próprios habitantes, de forma totalmente autónoma; ou a participação na construção das estruturas dos carros alegóricos usados nas Marchas Populares; ou ainda a constante reparação de automóveis de e por habitantes do bairro.

Também são referidas as competências futebolísticas existentes, sobretudo na camada mais jovem masculina da comunidade.

 

Crenças: 13 respostas

Origem da Quinta do Cabrinha: acredita-se que o nome do bairro tem a sua origem na alcunha de um homem que tinha muitas cabras.

Religião: a maioria das pessoas são católicas e vão à missa na capela local; esta é utilizada pelos mais velhos, sobretudo em maio; a capela, quando abre, o que parece que não é muito frequente, está cheia; também existem Testemunhas de Jeová; os idosos são mais religiosos que os mais novos.

Tabus: a primeira resposta é que “não existem” tabus; mas depois, com o desenvolver da conversa, vão sendo descobertos alguns (temas como a homossexualidade, ou bruxedos, ou ainda outros que, por precaução, preferimos não referir).

Superstições: existem sobretudo entre os mais velhos; foi referido, por exemplo, um ritual que é praticado quando se vai viver para uma nova casa (que envolve carvão, sal e azeite); ou a crença que “quando um cão uiva, é porque morreu alguém”. Também se acredita no paranormal, foram contadas histórias de visitas de familiares já falecidos. As crianças acreditam que vive nas traseiras do bairro uma senhora que enterra as pessoas vivas, a quem chamam de “Maria Sangrenta”. Finalmente, há uma superstição com a camisola do Benfica, que deve ser vestida quando o clube joga.

 

Instituições: 14 respostas

As instituições locais são referidas como uma mais valia para o bem-estar social e desenvolvimento cultural do bairro. As coletividades providenciam ainda um serviço desportivo para a população. Contudo, é também referido que há muitas instituições que não fazem qualquer contribuição para o bairro, chegando a ser nocivas – pois ocupam espaços que poderiam ser utilizados para o benefício da comunidade.

 

Objetos: 4 respostas

Considera-se que os símbolos das coletividades representam o bairro.

 

Edifícios: 9 respostas

São referidos os espaços do campo polidesportivo e do parque infantil como zonas de importante desenvolvimento cultural do bairro. No entanto, os habitantes do Cabrinha queixaram-se frequentemente que faltam mais espaços, nomeadamente de exterior, de convívio comunitário e de promoção do desenvolvimento cultural do bairro.

 

Conclusões

Durante este exercício de mapeamento coletivo recorrentemente ouvimos frases como “no tempo do Casal Ventoso é que havia…”, “nessa altura é que acontecia…” ou “as histórias do Casal Ventoso é que são dignas de ser contadas”. Também nos disseram repetidamente “aqui [no Cabrinha] já desapareceu praticamente tudo” ou “não há histórias, nem tradições, nem nada que seja nosso, genuíno”. De facto, foram-nos contadas, tanto por mais velhos, como por mais novos, muitas histórias antigas, vindas dos tempos em que o Casal Ventoso ainda existia, e praticamente nenhuma, depois de a população ter sido realojada na Quinta do Cabrinha. Este facto deixou-nos com a impressão de que a comunidade foi vítima de uma espécie de esvaziamento cultural, resultante desse movimento, ainda hoje não superado.

Os dados obtidos parecem querer mostrar-nos como a cultura existente no Cabrinha parece estar cristalizada, agarrada ao passado. É do senso comum que a cultura de determinado grupo ou comunidade constantemente sofre mutações à medida que o tempo passa, e quando tal não acontece, esse grupo ou comunidade poderá estar enfermo. De facto, dificilmente conseguimos chegar a informações, através deste mapeamento, que nos mostrassem novas formas de expressão cultural entretanto desenvolvidas, desde os tempos do realojamento, até aos dias de hoje. Pelo contrário, os dados mostram-nos formas de expressão que facilmente reconhecemos pertencerem a uma cultura tradicional lisboeta, vinda do passado, e que, de tantas vezes repetida que tem sido sem sofrer qualquer inovação ou mutação, se tornou de certa forma artificial, estereotipada, plana.

Noutros exercícios de auscultação realizados anteriormente, em que procuramos entender as relações dos habitantes do Cabrinha, comunitárias e com o espaço público, observamos como elas são precárias. As pessoas dificilmente se identificam com o bairro ou com a freguesia de Alcântara, em termos sociais e geográficos. Como resultado desta precariedade, não só as relações entre as pessoas, como também o cuidado dos espaços públicos e comuns, são negligenciados.

O mapeamento do património cultural do Cabrinha aqui realizado tem a necessidade de ser continuado, pois este é apenas um começo (a amostra foi composta por 11 pessoas). Contudo, os dados obtidos parecem ser já bastante evidentes, no sentido de explicar como a forte e sólida relação comunitária do tempo do Casal Ventoso, social e geograficamente, perde toda a sua força, quando as pessoas são mudadas para o Vale de Alcântara.

 

Isto leva-nos naturalmente a colocar algumas questões em cima da mesa:

  • Poderia ter sido o processo de realojamento feito de forma diferente, de maneira a evitar esse esvaziamento cultural?

  • Serão algum dia as fragilidades superadas, com o surgimento de novas formas culturais, voltando assim a fortalecer-se as relações dentro da comunidade e com o espaço onde vivem?

  • O que irá acontecer aos atuais moradores da Quinta do Cabrinha? Insistirão eles em permanecer no local, em nome de um forte passado cultural, social e comunitário, mas que praticamente já deixou de existir? Ou tenderão a sair do bairro, diluindo e fazendo assim para sempre esquecer a história de um bairro que durante séculos viveu marginalmente, uma espécie de aldeia dos Gauleses da cidade de Lisboa, com linguagem, história, organização e leis próprias, das quais hoje quase nada sabemos?

 

Este mapeamento deixou-nos no entanto uma certeza: tudo o que aqui está escrito existe plenamente na consciência da maioria dos habitantes do Cabrinha. As pessoas compreendem perfeitamente o esvaziamento cultural que sofreram, e as consequências negativas que isso trouxe para as relações entre elas e com o (novo) território em que vivem. Não o aceitam, mas compreendem-no.

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