Nascida há dez anos, no seio do núcleo dinamizador da manifestação Geração à Rasca, ocorrida um ano antes, a Academia Cidadã entra numa nova fase. Prestes a abandonar a sede, na Quinta do Cabrinha, na Avenida de Ceuta, centra-se em novos combates cívicos. João Labrincha, secretário e um dos fundadores, acha que a sociedade civil está mais madura. Apesar dos populismos e do crescimento da extrema-direita. Que são, assegura, meras reacções ao inevitável progresso social. Mas diz-se descrente no papel das redes sociais: “Hoje, já não seria possível organizar uma Geração à Rasca”.
Artéria: Este ano, comemoram-se 10 anos da Academia Cidadã, cujos objectivos, desde sempre anunciados, são impulsionar a cidadania activa e a construção de raízes de desenvolvimento com princípios de sustentabilidade social, económica e ambiental. Passada uma década, os objectivos foram cumpridos?
João Labrincha: Passada uma década, estamos a cumprir os objectivos, sim. Se, algum dia, alguma organização dissesse que cumpria [totalmente] esses objectivos, vivíamos numa sociedade utópica, maravilhosa. Mas tivemos alguns avanços, sobretudo no que toca às pessoas mais próximas do sítio onde tivemos a nossa sede até este momento. Fizemos alguns trabalhos de intervenção comunitária e pudemos ver, em pessoas concretas, os resultados. E tentámos fazer essa intervenção comunitária de uma forma um pouco diferente do que víamos ser feito até aqui na Quinta do Cabrinha.
Vou ser muito honesto. Havia e há uma abordagem muito paternalista, muito assistencialista…E atenção, é necessário, na sociedade em que vivemos, algum assistencialismo, porque há pessoas a passar fome e, então, tem que se tocar nessas pessoas também. Mas se só fizermos isso, essas pessoas vão continuar a passar fome no mês a seguir. E nós vamos ter de continuar a fazer assistencialismo. Num momento de emergência, é importante. Há organizações que o fazem e ainda bem. Nós tentámos empoderar, especialmente as crianças e os jovens aqui do bairro, no sentido de eles próprios se tornarem forças de mudança das coisas que eles próprios encaravam como estando mal.
A velha história da cana de pesca e do peixe…
Sim, essa história, sendo que nós temos um objectivo ainda acima desse, em que nos inspiramos na Ashoka, no criador da Ashoka, que diz que, mais do que se ensinar a pescar, nós temos é que revolucionar a indústria da pesca. Uma organização o que deve tentar fazer é alterações sistémicas. E é isso que a Academia Cidadã procura fazer, passo a passo. E é óbvio que os primeiros passos são locais, são de intervenção muito focalizada, às vezes quase personalizada. E nós fizemos aqui intervenção personalizada, com pessoas individuais, que viviam também elas descriminações específicas, aqui dentro do bairro, como questões LGBT, como questões relacionadas com a deficiência. E que nós tratámos pessoalmente.
Mas eram questões que os poderes públicos, camarários, eram incapazes de os detectar ou de lidar com eles?
Há alguns grupos em relação aos quais o Estado central – e, mesmo em alguns casos, o local – não tem como chegar a eles. Este bairro nem é um dos piores relativamente a isso, porque é muito homogéneo e até é fora do comum. É um bairro muito de pessoas nacionais portuguesas e que são nacionais há muitas gerações. Portanto, são maioritariamente brancos.
Etnicamente homogéneos…
Etnicamente homogéneos e etnicamente próximos da maioria da população. E, ainda assim, o estado central não consegue chegar. E a minha perspectiva, hoje em dia, é que não tem que chegar a tudo e a todos. O Estado deve garantir que todas as pessoas têm acesso a…Mas vão sempre existir pessoas que até podem saber que “têm acesso a”, mas há tantos motivos…Há medos. Por exemplo, pessoas que não sejam nacionais, não tenham nacionalidade, até podem ter o título de residência, mas as pessoas têm medo de aceder aos serviços públicos, porque não têm a certeza se têm tudo realmente bem, porque nunca há certeza quando vão ao SEF. Ou porque têm o NIF, mas falta-lhes o da Segurança Social. Aqui, no nosso bairro, o que acontecia muitas vezes, em termos de dificuldade no acesso, era a forma como eram tratados nesses locais. E nós servimos de mediadores.
Houve queixas concretas de discriminação?
Sim, houve queixas concretas. Houve uma pessoa com a qual intervimos, em que havia queixas relativas à sua discriminação em relação à sua sexualidade. Foi muito curioso, porque nós cá estivemos, fizemos workshops e, por isso, ele sentiu-se empoderado para sair do armário. Mas depois foi preciso fazer o acompanhamento posterior. Ou seja, a nossa sensibilização e os nossos workshops não foram suficientes para sensibilizar a população. E nós percebemo-lo na prática, com uma pessoa a vir dizer-nos “Olhem, participámos nos workshops, as pessoas estavam altamente concordantes, mas depois, no meu dia-a-dia, estão-me a fazer isto e aquilo“. Portanto, foi necessário fazer uma nova abordagem, tanto com ele como com os amigos e as coisas melhoraram bastante.
Isso foi parte desse trabalho localizado, que incidiu, sobretudo, neste local…
Sim, com crianças e jovens, fundamentalmente, e usando como metodologia o futebol de rua. A nossa forma de aproximação das pessoas foi “vamos fazer um campeonato e um conjunto de jogos com outros bairros”, de futebol de rua inclusivo e não competitivo…
Como é que é isso?
Continua a haver duas equipas, que competem uma com a outra, mas a forma como as coisas estão organizadas…Por exemplo, há faltas de fair-play e que dão direito a cartões amarelos e a cartões vermelhos. Não há insultos, esse tipo de coisas, que no futebol são muito toleradas, até quase incentivando que as pessoas se insultem umas às outras. Ali é exactamente o oposto e são dados pontos positivos por atitudes positivas.
Isso está em linha com a ética da Academia Cidadã. No fundo, dá para perceber que pretende incentivar essa ideia de cooperação e de cidadania. Transplantando para a sociedade em geral, dez anos depois, sentem que a sociedade portuguesa está mais madura em termos de cidadania?
Boa pergunta…Se olhar para há dez anos, diria que existe uma cidadania mais organizada, que até da parte do Estado existe maior regulamentação em relação a essa cidadania. Acho é que…cidadania é uma coisa muito lata. Acredito que há mais cidadania, mas também há mais cidadania num sentido que eu, honestamente, fico muito preocupado. Ou seja, existem mais activistas para conservar coisas que não devíamos conservar e que, culturalmente, até são tradições, mas que, a meu ver e da academia, são erradas…
Como, por exemplo…
Como, por exemplo, coisas relacionadas com os direitos dos animais. Nós continuamos a ter touradas em Portugal, continuamos a matar animais por lazer.
Mas esse activismo dito conservador é muito visível? Sente-se isso?
Sim. Hoje, existe esse activismo. A direita não costumava fazer activismo. Mas agora vemos muito mobilizações sobre questões como os direitos LGBT, vemos activismo racista. Acção directa em frente à sede do SOS Racismo, manifestações da extrema-direita em frente de uma associação anti-racista…
Mas isso não era bem visto como activismo…
Para mim, é activismo, é cidadania. São pessoas que querem influenciar a cidadania, querem influenciar a nossa sociedade, sem ser através dos meios tradicionais electivos, representativos. Não tenho dúvidas de que é activismo.
E funciona, muitas vezes, como uma espécie de contra-balanço, de resposta reactiva à cidadania com a qual se identifica…
Acho que existe uma diferença fundamental para aquilo que existiu nos anos 10, 20 e 30 do século passado, quando se implantaram os fascismos. Há uma diferença fundamental. Nessa altura, o fascismo não era conservador. Era revolucionário, era uma novidade. Hoje, o neo-fascismo ou o conservadorismo é reactivo. Isso dá-me alguma esperança, porque, se é reactivo, está só aqui a tentar atrasar ou a tentar que não se faça uma evolução que me parece ser natural. Se olharmos para a evolução histórica, o que vemos é uma evolução positiva. Com muitos retrocessos pelo meio.
Por exemplo, eu dei aulas extracurriculares numa escola e percebe-se que as crianças e os jovens hoje têm uma forma de pensar e uma mentalidade tão mais à frente, tão mais aberta, quanto a certos temas. Dei aulas em meios diferentes, umas rurais, outras urbanas, e é uma coisa incrível. As crianças têm uma mentalidade muito à frente do tempo em que vivemos hoje, quanto a racismo, discriminação, até porque muitos deles convivem com pessoas de outros países, de outras etnias, e relativamente a questões relacionadas com a orientação sexual, identidade de género.
E fazem-no com grande naturalidade…
Com uma naturalidade! Nós, os adultos, andamos aqui a discutir coisas muito fortes, ideológicas, etc, que eu percebo que faça confusão a pessoas que foram educadas com uma educação católica, muitos deles foram ainda educados dentro do fascismo. Das pessoas que vivem hoje em Portugal, um grande número ainda foi educado nessa altura. E é natural que lhes faça confusão a mudança. Para estas crianças, é só o natural. Isso dá-me muita esperança. A Academia Cidadã, neste momento, está a preparar-se para atacar essa parte sistémica, porque nós ajudámos a pescar e vamos continuar a ensinar a pescar, seja em Lisboa ou fora dela, como sempre fizemos. Mas também sempre tivemos projectos de “guarda-chuva”, de ambição nacional.
E é isso, naturalmente, que estamos a fazer. É provável que a maior parte das actividades vá acabar por cair aqui em Lisboa, mas um projecto que estamos a preparar para combater o crescimento destes movimentos que nós chamamos anti-democráticos e a falta de preocupação em relação às alterações climáticas, vamos fazer um projecto de âmbito nacional. Com intervenção local, mas que incluirá uma parte de campanha e uma parte de lóbi, de advocacia e de comunicação fora do comum, nas redes sociais, mas também nos meios de comunicação convencionais.
Quando surgiram, as redes sociais já estavam implantadas, mas encontravam-se ainda em crescimento. Aliás, tendo feito parte do núcleo central da Geração à Rasca, sabes bem o papel que as redes nele tiveram. Passada uma década, o papel das redes sociais nos movimentos de cidadania pode ser avaliado como positivo? Ou tem esse lado pernicioso de muita informação negativa e fake news?
Hoje, não sou tão deslumbrado como era na altura. Até porque fui percebendo que houve alterações nas redes sociais. Hoje, seria impossível organizar a Geração à Rasca. Seria muito mais difícil fazer o que fizemos na Academia Cidadã no início, em que, sim, conseguimos chegar aos meios convencionais – porque havia o histórico, as pessoas sabiam que tínhamos organizado a Geração à Rasca, e, portanto, quando fizemos as primeiras sessões abertas da academia, em que as pessoas podiam entrar e tornar-se sócias, tivemos uma ajudinha dos meios convencionais. Mas a verdade é que o grosso da coisa foi feito nas redes sociais.
Hoje, relativizo um pouco mais. Por um lado, as redes sociais mudaram, os algoritmos mudaram. Existem alguns estudos científicos, em particular um estudo britânico, que analisou Norte de África, Espanha e Portugal e a forma como o Facebook (FB) evoluiu às custas de analisar o que aconteceu às redes sociais. No Norte de África, ao contrário do que se pensava, o papel das redes não foi assim tão relevante. Chegou-se à conclusão que onde as redes sociais foram, de facto, muito importantes na mobilização foram a Geração à Rasca em Portugal e, dois meses depois, os Indignados, em Espanha. O FB usou-nos para estudar as dinâmicas que aconteceram dentro dos grupos, para impedir que voltassem a acontecer.
Ou seja, hoje não seria possível organizar uma Geração à Rasca a partir de um evento no FB, porque o FB não iria fazer o que fez na altura. Amigos meus que não tinham interesse em questões sociais, de cidadania, em questões políticas, receberam nos seus feeds a indicação de que eu estava a organizar um evento que se chamava Geração à Rasca.
Mas qual é a razão dessa mudança?
Acho que o FB não se quer meter em grandes problemas em termos ideológicos. Eles fazem a mesma coisa para qualquer dos lados. Não é por a mensagem ser mais consevadora ou mais progressista que existe esse limite em geral para a cidadania e o activismo. O que FB e outras redes sociais não fazem suficientemente bem – e isto é aqui uma outra dinâmica – é o controlo das fake news. Isso é uma coisa que já existia na altura, há dez anos. Eles conseguiram mudar a forma como as pessoas usavam as redes para fazer activismo, impedi-las de o fazer, mas claramente não impediram de lançar fake news. E podíamos até dizer que eles deixaram acontecer para poder analisar, como fizeram com a Geração à Rasca e com os Indignados, para depois constrangerem.
No caso das fake news, não me parece que tenha havido assim uma grande evolução. Já tiveram mais do que tempo necessário para verem quais são os erros, mas eu continuo a ver fake news nas redes. E até acho que vejo mais. As redes mudaram, mas não foi para melhor. Foi para pior, foi para vender mais às pessoas, foi para que, incluindo associações sem fins lucrativos, sejam obrigadas a pagar ao FB para que a mensagem…Já nem estou a dizer que é para sair da nossa bolha. Só para irmos à nossa bolha, temos que pagar. Isso foi uma coisa que o FB decidiu fazer. Ou seja, publicações que não sejam pessoais, isto mete toda a gente no mesmo barco, incluindo organizações sem fins lucrativos, têm de pagar ao FB, se querem que a sua mensagem passe.
Independentemente dessas questões, as pessoas mobilizar-se-ão sempre, não é? Não achas que, apesar disso, há muito mais actividade de movimentos de base comunitária? Olhe-se o exemplo de Lisboa…Esse era dos vossos objectivos, afinal…
Eu quero crer que sim. Não gosto fazer essas afirmações, tenho alguma dificuldade, mas a verdade é que existem estudos académicos que dizem que sim, houve um antes e um depois da Geração à Rasca em termos de movimentações. E também em termos da Academia Cidadã, porque a Geração à Rasca era muito à volta do desemprego e da precariedade e o “temos que participar mais”. E a Academia Cidadã ficou com essa parte do “temos que participar mais”. E o que vejo, e os estudos indicam, é que há, de facto, um antes e um depois. As pessoas passaram a juntar-se mais, a organizar-se mais.
Éramos um grupo de amigos. Mas, na altura, apareceram grupos por todo o país, que se transformaram nas mais diversas coisas. E que, depois, até é difícil nós irmos ver as origens, mas se formos ver as datas das suas fundações, reparamos, por exemplo, que há um enorme número de movimentos que está ligado à sustentabilidade. Muita gente junta-se para fazer hortas urbanas, para criar telhados verdes, fazer captações de água. Pelo país todo, ainda hoje estão a aparecer montes de projectos de quintas ecológicas, de…
A esse nível, nota-se que há uma riqueza muito maior ao nível do substrato social e da cidadania…
Diria que sim, sim. A melhor forma de vermos que a cidadania está muito mais activa é que já não é só uma coisa de esquerda. Eu sou uma pessoa de esquerda e gostava que houvesse cada vez mais força deste campo, mas também fico contente de ver que a direita se apoderou destes métodos que vão para lá do representativo eleitoral, e que são necessários, para fazer intervenção social.
Não achas paradoxal que, em simultâneo a este amadurecimento da sociedade civil, com mais cidadania, tenha surgido um fenómeno como o substancial aumento do peso eleitoral da extrema-direita na Europa e em Portugal?
Acho que é uma resposta, que é puramente reactivo. O aparecimento da extrema-direita com esta força é o fenómeno que confirma que a cidadania progressista está mais activa.
São os velhos fantasmas?
Exactamente. Ao mesmo tempo que temos uma sociedade, na Europa e em Portugal, mais madura, a saber melhor o que fazer para lá dos meios institucionais, a saber melhor usar o smartphone para fazer o seu activismo, literalmente – sejam eles de cariz local ou com contornos identitários e de discriminação. Acho que estamos a caminhar para o tal amadurecimento, estamos a caminhar para uma sociedade mais igualitária, mais aberta às diferenças. Ao mesmo tempo, existem pessoas que vivem com medo. E existem depois alguns agentes que ainda instigam mais esse medo, para tentarem barrar aquilo que é uma evolução natural.
Portanto, iremos ter sempre movimentos de extrema-direita a crescerem, enquanto tivermos uma sociedade que, ela própria, de forma natural, evolui num sentido progressista. Em que, aliás, temos até a sociedade um pouco à frente dos políticos. Houve algumas evoluções legislativas em Portugal que estiveram à frente das mentalidades genéricas. No momento em que se aprovou o casamento homossexual, penso que isso foi um momento-chave em que, realmente, a lei estava um pouco mais à frente das mentalidades e, depois disto, fez com que as mentalidades se abrissem. Mas diria que hoje estamos a viver o contrário. Hoje, as mentalidades das pessoas…mesmo as pessoas com mais idade sabem o que são as alterações climáticas, sabem o peso que isso já está a ter no dia-a-dia das pessoas.
Uma grande parte das pessoas, incluindo as crianças e jovens de que já falámos, têm uma visão muito mais aberta em relação a imigrantes, refugiados, por exemplo. Quero crer que somos um país maioritariamente progressista e tenho algumas indicações de que isso é uma realidade. Acho que isso tem muito que ver com o facto de termos tido uma ditadura de direita durante muitos anos e de haver muita gente que passou por isso e não gosta disso. Pode ser ingenuidade minha, mas julgo que a maior parte das pessoas no mundo são progressistas. O que estamos a assistir é a uma tentativa de travar algo que já está a acontecer.
Vocês surgiram num contexto de profunda crise económica e social, na sequência da crise do “sub-prime”. Pouco mais de uma década depois, tudo leva a crer que estamos na iminência de uma nova grande crise. Isto, de alguma forma, poderá ter consequências, positivas ou negativas, na cidadania?
As duas coisas. Nós queremos estar presentes. Por isso é que estamos a preparar um projecto para candidatar-nos agora, para que esteja a funcionar no próximo ano, porque temos essa noção dessa urgência. É o momento em que quem quer o mal, que quer que sigamos num sentido negativo, de retrocesso, vai pegar no tal medo das pessoas. E hoje as pessoas vivem com medo, nomeadamente nestas questões económicas. As pessoas que vivem com medo são fáceis de serem pegadas por pensamentos e ideologias que são elas próprias baseadas no medo e no medo face ao outro e ao desconhecido. Nós, sociedade civil progressista, temos agora a obrigação de estar actuantes, de demonstrarmos às pessoas que existe agora outro caminho.
Na Academia Cidadã, não somos anti-sistema, somos pós-sistema. Queremos pensar pós-crise climática, pós-discriminações. Há razões para descontentamento com o sistema político. Se não tocarmos nos problemas da nossa democracia, se não falarmos disso, então vamos estar a abrir as portas a quem critica por criticar e usa as imperfeições da democracia para impôr outro tipo de pensamento e agendas. Na Academia Cidadã, queremos contribuir para que o que vier a seguir a esta crise seja algo mais igualitário, mais progressista, mas equilibrado. A nossa mensagem vai ser a de dar esperança às pessoas.
O que está em linha com as ideias fundadoras da academia, não é? Surgiu primeiro como movimento de revolta e depois de esperança…
Sim. O manifesto da Geração à Rasca e o manifesto da Academia Cidadã são isso. Começa-se por se apontar os problemas, os partidos do poder precisam de admitir que existem problemas no sistema. A nossa arma para combater quem está a dizer que há problemas no sistema, porque tem segundas intenções, não pode ser dizer que não existem esses problemas. Uma das nossas perspectivas, ao juntar política, economia e questões ambientais, tem muita a ver com isto. Acreditamos que a extrema-direita está a crescer porque estão a crescer as desigualdades, está a crescer o número de pessoas que não se sente representado com este formato de democracia parlamentar.
Há uma questão que se agravou substancialmente nos últimos dez anos, que tem que ver com o mercado da habitação. Muita gente foi corrida para fora de Lisboa…Isto não poderá ser algo nocivo para a mobilização cívica, destruindo movimentos que foram sendo criados? Estamos a falar de pessoas que se agregam e essa comunidade está a ser escorraçada…
Tem vindo a ser. Eu sou um exemplo disso, fui morar para a zona do Carregado. Há zonas de Lisboa muito engraçadas, como Arroios, Anjos, Graça, Penha de França, que têm tido, nos últimos anos, um borbulhar de movimentos sociais. E aquilo que vemos lá é um constante desaparecimento de pessoas desses mesmos movimentos. Na Academia Cidadã, se formos a analisar, no início, vivíamos quase todos no centro da cidade. Literalmente no centro. Hoje, há duas pessoas. O resto da malta está em Queluz, Mem Martins, houve pessoas que se mudaram para outras cidades.
O Covid foi horrível também para o movimento social. As pessoas não se podiam juntar. A pandemia veio reforçar essa atomização sentida desde o início deste movimento de subida das rendas. O que tem acontecido é que as pessoas têm saído do centro da cidade. Hoje trabalhamos mais online. Um dos motivos para estarmos a deixar a sede é também esse. Antigamente, jantávamos juntos e hoje não temos isso, é mais tudo online. E acho que não somos os únicos.
Achas que a academia durará mais dez anos?
Quero crer que sim. O nosso objectivo é muito ambicioso. Mesmo que, nos próximos dez anos, conseguíssemos melhorar muito o nosso sistema democrático, melhorar muito o nosso sistema económico, melhorar muito em termos daquilo que são as discriminações, o ser humano é muito complexo e diverso, também para as coisas negativas. O poder é uma coisa também muitíssimo complexa. A história é de ciclos. Se daqui a dez anos tivermos a sorte de estar num ciclo positivo e a maioria das coisas que são a missão da academia se concretizarem, acho pouco provável, mas estou cá para lutar para isso. Temos que estar atentos, porque poderá haver um retrocesso, porque é assim que a história funciona. A Academia Cidadã continuará a fazer sentido para sempre, enquanto houver pessoas que queiram trabalhar na sua missão.