Esta é a quarta parte da grande reportagem “Repensar o sistema em que vivemos” para garantir um futuro mais sustentável e justo, que tem seis partes e começou a ser publicada a partir de 17 de novembro no Gerador. “Tudo está interligado […], e estes conflitos acontecem também pela crise das nossas economias, do nosso modo de vida como sociedade, que é insustentável, com produções e modos de consumo também insustentáveis, que geram crises sociais, económicas e políticas em vários países, principalmente nos em desenvolvimento, que são aqueles onde muitos dos países desenvolvidos vão explorar os recursos. Então, temos de ter uma visão muito mais macro, abrir os olhos para esses outros aspetos, e ter uma sensibilidade muito mais apurada, porque falta muita empatia no mundo atualmente.” – entrevistas exclusivas com Islene Façanha (associação ZERO), João Costa (ativista pela justiça climática) e Susana Viseu (consultora da presidência da República Portuguesa).
Um ponto de situação: 2023, o início da “era da ebulição global”
O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, conhecido como IPCC, divulgou a 20 de março um relatório que António Guterres, secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), descreveu como “um guia de sobrevivência para a humanidade”. Este relatório síntese do Sexto Ciclo de Avaliação, formado por vários grupos de cientistas de diversos países que trabalharam sob a égide da ONU e avaliaram ao longo dos últimos anos as alterações no clima do planeta, resume os resultados de seis outros publicados entre 2018 e 2022. Cada grupo de trabalho contribuiu com um relatório diferente (com os subtítulos A Base da Ciência Física, Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade e Mitigação das Alterações Climáticas), tendo sido desenvolvidos ainda três relatórios especiais (Aquecimento Global de 1,5°C, Alterações Climáticas e o Solo e O Oceano e a Criosfera num Clima em Mudança).
O documento desenvolve extensivamente as consequências das alterações climáticas desencadeadas pelo ser humano e as medidas necessárias para limitar o aquecimento global a 1,5ºC (graus Celsius) acima dos valores pré-industriais, salientando que tal ainda é possível, mas cada vez mais improvável, e que a humanidade deve lutar por uma meta o mais próxima possível desse valor. Ainda assim, já no final do ano passado, relatórios da UNFCCC (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas) e do UNEP (Programa das Nações Unidas para o Ambiente) apontavam para uma possível subida global da temperatura de 2,5ºC até 2100, com estimativas no intervalo de 2,1 a 2,9.
Um ano depois, o Emissions Gap Report do UNEP de 20 de novembro (a 14.ª edição deste relatório de avaliação anual) tem logo como subtítulo Broken Record – Temperatures hit new highs, yet world fails to cut emissions (again). Estes relatórios estão de facto a tornar-se num ‘disco riscado’, verificando repetidamente que as temperaturas continuam a aumentar e que os cortes de emissões continuam a não ser suficientes. Apesar de algum progresso ter sido conseguido desde a assinatura do Acordo de Paris em 2015, mesmo que as nações cumpram as contribuições incondionais, o aquecimento global só será limitado a 2,9ºC, descendo esse número para 2,5 na eventualidade de os países implementarem também as contribuições condicionais.
Com o fim do ano a aproximar-se, já se tornou bastante claro que 2023 está a ser um ano preocupantemente atípico. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) e o programa Copernicus Climate Change Service (C3S) da União Europeia estimam que julho tenha sido o mês mais quente de que há registo. Estes dados foram imediatamente acompanhados por declarações de António Guterres, que os classificou como “um desastre para todo o planeta”. “E para os cientistas, é inequívoco – os seres humanos são os culpados”, acrescenta o secretário-geral da ONU: “Tudo isto é inteiramente consistente com as previsões e os repetidos avisos. A única surpresa é a velocidade da mudança. As alterações climáticas estão aqui. É assustador. E é apenas o começo. A era do aquecimento global terminou; a era da ebulição global chegou.”
O último boletim mensal do C3S prevê que 2023 seja o ano mais quente desde que há registo. A cientista Samantha Burgess, vice-diretora do serviço de monitorização, diz que estamos “atualmente 1,43ºC acima da média pré-industrial”, frisando que a “urgência de uma ação climática ambiciosa na COP28 nunca foi tão grande”. A 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, que vai decorrer do dia 30 deste mês até 12 de dezembro no Dubai, é o espaço de negociação anual para o qual a comunidade científica olha sempre sem grandes expetativas e da qual sai, ainda assim, desiludida ano após ano.
Ainda, na sequência do artigo “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency”, publicado em janeiro de 2020 por cientistas membros da Alliance of World Scientists e que já conta com mais de 15.000 assinaturas, uma equipa internacional de 12 cientistas publicou a 24 de outubro um novo relatório em jeito de atualização. “A vida no planeta Terra está sob cerco”, escrevem logo na abertura. Salientam que a comunidade científica anda a alertar há décadas e que, “infelizmente, o tempo acabou. Estamos a assistir à manifestação dessas previsões à medida que uma sucessão alarmante e sem precedentes de recordes climáticos são ultrapassados, provocando o desenrolar de cenas de sofrimento profundamente angustiantes. Estamos a entrar num domínio desconhecido no que diz respeito à crise climática, uma situação que ninguém jamais testemunhou em primeira mão na história da humanidade”.
“Os sinais vitais da Terra estão a falhar: emissões recorde, incêndios ferozes, secas mortais e o ano mais quente de sempre. Podemos garantir isto mesmo ainda estando em novembro. Estamos a quilómetros dos objetivos do Acordo de Paris – e a poucos minutos da meia-noite para o limite de 1,5 graus. Mas não é tarde demais. Nós podemos – vocês podem – evitar a queda e a queima do planeta. Temos as tecnologias para evitar o pior do caos climático – se agirmos agora. O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas traçou um caminho claro para um mundo a 1,5 graus. Mas precisamos de liderança – cooperação – e vontade política para agir. E precisamos disso agora. É verdade, o nosso mundo é desigual e está dividido. Como vemos nesta região, os conflitos estão a causar imenso sofrimento e emoções intensas. Acabámos de ouvir as notícias de que as bombas estão a soar outra vez em Gaza. E o caos climático está a atiçar as chamas da injustiça. O aquecimento global está a estourar orçamentos, a aumentar os preços dos alimentos, a alterar os mercados energéticos e a alimentar uma crise no custo de vida. Mas a ação climática pode virar o interruptor.”
Estas foram as palavras de António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, na cerimónia que abriu a Cimeira da Ação Climática de 2023. O evento insere-se na COP28, a 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, que decorre no Dubai desde 30 de setembro e irá terminar na próxima semana a 12 de dezembro. Em outubro, Zeke Hausfather, cientista climático na Berkeley Earth e autor nos relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), escrevia que, “à medida que as temperaturas globais quebravam recordes e atingiam novos máximos perigosos ao longo dos últimos meses, eu e os meus colegas cientistas climáticos fomos ficando quase sem adjetivos para descrever o que víamos”, acrescentando que, “embora muitos especialistas tenham sido cautelosos em reconhecê-lo, há cada vez mais provas de que o aquecimento global acelerou ao longo dos últimos 15 anos”, o que implica que “os efeitos das alterações climáticas que já estamos a observar – ondas de calor extremo, incêndios florestais, precipitação e subida do nível do mar – só se vão agravar nos próximos anos”.
Se, segundo novos estudos como o da Nature Climate Change, a humanidade tem já menos de seis anos para conseguir limitar o aquecimento global a 1,5ºC (graus Celsius) acima dos valores pré-industriais, porque é que as medidas parecem continuar a surgir de forma tão lenta e pouco eficaz? Se o Relógio do Clima continua a fazer a sua contagem decrescente – e se a humanidade já sabe por onde começar, quais os caminhos a seguir e como podem ser as cidades do futuro, como as partes anteriores desta grande reportagem analisaram –, quais têm sido os maiores entraves para que o sistema em que vivemos seja repensado e transformado para garantir um futuro mais sustentável e justo?
Os limites das cimeiras e dos acordos
Numa COP que já se estima bater recordes de participação, com 80.000 pessoas inscritas, o apelo do secretário-geral da ONU foi ecoado por muitas das figuras de Estado presentes; no entanto, ainda o evento não tinha começado e as críticas já surgiam de todos os lados.
No mesmo dia que António Guterres fazia o seu discurso de abertura, Peter Kalmus publicava: “As cimeiras anteriores da ONU obviamente que nos falharam, mas este é um novo nível. Toda a gente na Terra precisa de saber que a reunião foi invadida por executivos dos combustíveis fósseis, tornando-a numa piada doentia e destruidora do planeta. Não há esperança real de parar o aquecimento global catastrófico até que resolvamos isto”. Porquê? “Neste que é o ano mais quente da história da humanidade, a cimeira do clima está a ser realizada nos Emirados Árabes Unidos [UAE, na sigla em inglês] e presidida por um diretor executivo de combustíveis fósseis chamado sultão Ahmed Al-Jaber. É difícil imaginar algo mais cínico ou mais maligno. E, no entanto, as coisas ficaram mais cínicas e mais malignas, com as recentes revelações de que os UAE têm abusado do seu papel de anfitrião para fechar acordos paralelos para expandir os combustíveis fósseis”, desenvolve o cientista climático da NASA, que foi entrevistado pelo Gerador para a primeira parte desta grande reportagem.
Depois da fuga de documentos noticiada a 27 de novembro que Peter Kalmus menciona, chegaram também à opinião pública declarações feitas pelo presidente da COP28 num evento decorrido uma semana antes. Nestas, afirmava não existirem bases científicas que comprovem a ligação entre a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis e a limitação das temperaturas globais dentro dos parâmetros do Acordo de Paris, referindo ainda que a eliminação destes combustíveis levaria “o mundo de volta às cavernas”. “Enquanto cientista climático, estou chocado, frustrado e enojado. Estou a perder a minha fé na humanidade. Tudo isto deveria ser óbvio para todos. Ter de escrever isto vez atrás de vez é profundamente doloroso. No final de contas, se pararmos um pouco para pensar sobre isto, nada é mais importante do que um planeta habitável. Tudo o resto – todas as esperanças, sonhos e aspirações da humanidade, toda a nossa felicidade, amor e crescimento – depende disso”, conclui Peter Kalmus.
Susana Viseu, consultora da presidência da República Portuguesa (para temas como a transição climática, ambiente, oceanos, energia, ordenamento do território e desenvolvimento do interior), acredita que “há grandes desafios nestas questões, que são questões globais”. Em entrevista ao Gerador, lamenta que, logo à partida, os acordos feitos tenham um caráter muito pouco vinculativo. “Mesmo o Acordo de Paris é um acordo de princípios, onde foram estabelecidas metas que foram acordadas pelos diferentes estados-membros, mas para as quais não há nenhuma penalização se não forem cumpridas”, aponta. “Enquanto os vários estados-membros não passarem para a sua lei nacional as metas e não as assumirem realmente” – o que já aconteceu em Portugal, com a Lei de Bases do Clima, e noutros países, “mas na grande maioria não” –, “não acontece nada a nenhum desses países se não as cumprirem”. “Como tudo aquilo que não é obrigatório e é de caráter meramente voluntário, sobretudo quando falamos em metas que têm uma implicação muito grande ao nível das economias, se as metas não são assumidas como obrigatórias, se só se cria um plano de ação para as concretizar, elas não vão passar do papel.” Defende, assim, que “é muito importante continuar a fazer pressão para que se passe das palavras aos atos, porque realmente já não temos tempo para continuar com grandes discussões e com falta de ação no terreno”.
Quando o Gerador entrou em contacto com a ZERO (Associação Sistema Terrestre Sustentável), o seu presidente, Francisco Ferreira, regressava de Bruxelas, onde esteve em eventos preparatórios da cimeira da ONU. Num documento na altura partilhado com o Gerador, a ZERO apontava seis temas fundamentais para esta COP: o balanço dos esforços climáticos (a chamada Global Stocktake, avaliação periódica exigida pelo Acordo de Paris); a mitigação, que inclui a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis e a expansão das energias renováveis e da eficiência energética; o financiamento climático e a transformação do sistema financeiro; a adaptação, nas suas mais diversas formas; as perdas e os danos; a alimentação e a agricultura.
Islene Façanha, diretora de projetos da associação, também participa no evento no Dubai. Ao conversar com o Gerador dois dias antes do início da COP, diz ser “um bocado crítica” destas cimeiras da ONU. “Esta é uma opinião muito pessoal” (ou seja, não representa necessariamente a visão da ZERO), “mas, ainda assim, é uma visão partilhada, que é: a COP deveria ter uma reestruturação muito grande. Precisávamos de ter mais atores que possam contribuir para as negociações – não ter só, por exemplo, países, mas também mais representantes da sociedade civil, e que estivessem presentes muito mais tempo nas negociações. Até porque muitos dos países, principalmente os mais desenvolvidos, influenciam até na linguagem dos documentos, e podem desacelerar o que deveria ser muito mais rápido na implementação das políticas. E isso é uma barreira até para o avanço das ações nacionais, porque, por exemplo, decisões tomadas no âmbito de encontros de alto nível como este fazem uma diferença enorme nas ações dos países em desenvolvimento, que precisam de fundos até para a transição climática.”
Essa falta de justiça nas próprias cimeiras constitui “uma barreira muito grande”, “além de que também há a questão das agendas políticas”, com os governos a mudarem regularmente nos países envolvidos e mesmo as trocas entre os países nos mandatos, “e isso também põe em causa as negociações, principalmente quando são partidos que afetam o avanço dos debates em agenda, como tem sido agora o ciclo da extrema-direita”. Esta “lentidão” a nível internacional é apontada como “muito prejudicial para a nossa implementação a nível nacional”.
No fundo, estas dificuldades funcionam em bola de neve: a comunidade científica prepara o terreno para as negociações, contribuindo com relatórios de avaliação e propondo a aprovação de medidas (cuja implementação já será sempre demorada após a sua aprovação), e, ainda assim, as versões finais dos textos ficam sempre aquém das recomendações iniciais.
Ainda assim, “muitas coisas estão a avançar”, embora Islene Façanha considere que “o sucesso das COP aconteceu no seu início, quando foram realizados acordos como o Protocolo de Quioto”. Já este ano, “uma conversa muito importante – e que apresenta uma oportunidade até para corrigirmos esse rumo de instabilidade que temos na ação climática – é a questão da avaliação global, o Global Stocktake. Vamos finalmente poder avaliar como é que os países estão, se estão mais alinhados com o Acordo de Paris ou se estão muito longe (embora já tenhamos percebido até pelos últimos relatórios relativos às emissões que estamos desalinhados com a meta de 1,5ºC, com previsões de 2,5, 2,9, ali a chegar quase aos 3)”.
A partir desses dados, Islene Façanha espera que seja possível identificar “pontos de fragilidade a serem trabalhados até à COP do Brasil, que vai ser daqui a dois anos”. Nessa que será a 30.ª COP, vão ser reavaliadas as Contribuições Nacionalmente Determinadas (as NDC), de forma a haver “um ajuste do trabalho, porque os impactos climáticos estão a criar mais vulnerabilidades, desigualdades, e a privar muitas pessoas de uma vida com dignidade. É mesmo muito urgente conseguirmos avançar com a ação climática, principalmente no Sul Global, porque são as pessoas que menos contribuíram para a crise climática que têm de pagar as consequências dessa ação destrutiva. E as emissões continuam a aumentar, não vemos aqui um desacelerar de emissões”.
Já com esse balanço global, a diretora de projetos da Zero prevê que esta vá ser “uma COP de reflexão, e também vai ser interessante perceber a posição dos países desenvolvidos, se vão mesmo avançar com as contribuições por fundos, porque a União Europeia já tinha confirmado que estava disponível para contribuir, e que, até além do financiamento do Fundo de Perdas e Danos, também ia ajudar com a transição energética nos países de desenvolvimento, e os Estados Unidos também”. E este é outro ponto interessante: “os países que são cruciais não vão ter os seus chefes de Estado presentes, que são os Estados Unidos e a China”. Juntos, os dois países representam quase 40% das emissões de gases com efeito de estufa antropogénicas. E, no entanto, onde não estão presentes os maiores emissores, estão os combustíveis fósseis. Islene Façanha salienta que “na última COP foram enviados 637 delegados representantes dos lobbies de combustíveis fósseis”. Alerta ainda que é possível que este ano o desequilíbrio seja ainda maior, já que “a sociedade civil teve problemas a chegar ao Dubai – é um lugar muito mais caro, muito mais distante, e muitas das organizações não conseguem chegar lá”. “Devemos todos ter muita atenção ao que vai acontecer, até para não dar espaço às negociações laterais, não em prol da ação climática, mas em prol da expansão dos combustíveis fósseis”, acrescenta.
A especialista em alterações climáticas e políticas de desenvolvimento sustentável reforça ainda a necessidade de todas as instituições deverem regularmente “repensar os seus objetivos, e ainda não se fez isso com a Conferência das Partes, nem até com a própria estrutura da ONU. E destaca: “estamos noutros tempos, devia-se repensar a estrutura e os procedimentos. Tudo isto ajudaria a voltar a ganhar confiança das pessoas nestas instituições”.
Que agendas políticas?
Islene Façanha considera que “uma das maiores barreiras é a vontade política”, referindo-se aos obstáculos às mudanças de paradigma, e que esta barreira funciona a dois níveis diferentes. Por um lado, os ciclos governativos, com as alterações de mandatos, tornam “difícil manter a continuidade do trabalho na área ambiental (não só, o mesmo se aplica a várias outras áreas também)”, bem como os constantes períodos de campanha eleitoral. “É um bocado complicado conseguir influenciar no âmbito destas alterações, como a que estamos a atravessar em Portugal agora com a crise política, e também no nível mais macro, já que a nível europeu também vai haver eleições no próximo ano.” Tudo isto afeta “porque é quase como se fosse uma interrupção da linha de pensamento, estamos a trabalhar em algo e de repente já não conseguimos falar com ninguém”. Por outro lado, e ainda assim, “o grande obstáculo a nível de decisores políticos é que as agendas políticas não estão inclinadas para aquilo que realmente necessitamos. Como representantes da população, deveriam estar atentos às necessidades da população e ao nosso futuro comum. Temos de estar sempre a pressionar – o que também é o nosso papel enquanto sociedade civil –, porque a nossa janela de oportunidade está mesmo a fechar-se. E já vemos que, caso as políticas continuem business as usual, sem nenhuma alteração em prol da ação climática, vamos chegar aos 3 graus de temperatura”.
Em entrevista ao Gerador, João Costa, ativista pela justiça climática (com atividade na associação Academia Cidadã, entre vários outros movimentos e organizações), defende que “o problema é demasiado simples dentro da complexidade que tem”. “Porque é que estamos a falar tanto de inflação e deflação? As pessoas dizem palavras que nem sabem o que significam, até porque na verdade não significam nada, são só construções humanas. Vamos organizarmo-nos para que toda a gente tenha comida, para que toda a gente tenha casa, para que toda a gente tenha tudo o que precisa de básico para sobreviver. E depois a partir daí logo se vê.”
O ativista salienta que as pessoas dedicam a sua vida a “trabalhar para um sistema que nem sequer tem como objetivo final que todas as pessoas do mundo tenham comida na mesa” – e alimentos não faltam, “metade do mundo desperdiça comida e a outra metade morre à fome (em números muito gerais, claro)”. João Costa recorda uma citação (“se eu quero alimentar alguém na rua, sou um anjo, mas se reclamo que ninguém devia passar fome, sou um comunista”) para expor que o sistema em que vivemos “é altamente ideológico, e quando se põe em causa o sistema é-se acusado de ser extremista. As pessoas falam como se o sistema fosse neutro, mas não é: é altamente ideológico e no sentido errado. O sistema em que vivemos, independentemente do nome que tenha, é doentio e macabro”.
A Linha Vermelha, um dos projetos onde trabalha, dedica uma das suas páginas a soluções para o futuro. “Neste momento”, descreve João Costa, “ainda temos as finanças e a economia no cimo de tudo, e só depois é que estão as pessoas, os seres vivos e o planeta”. “Vamos mudar esta ordem, pôr as pessoas, os seres vivos e o planeta no centro”, defende, acrescentando que “a mudança que temos de fazer, ainda que profunda, é tão simples”. No seu entender, os portugueses “acham que vivemos em democracia, mas não, nós vivemos em capitalismo, porque não há democracia nenhuma em que a conversa não se centre em dinheiro”. Do seu ponto de vista, o debate político não quer saber de “criar postos de trabalho para incentivar certas indústrias, para incentivar certo tipo de benefícios para as populações, ou para proteger certas zonas do país”: “não tem nada a ver com estratégia nem planeamento, tem a ver com milhões de euros”.
Uma das narrativas do Climáximo é, precisamente, ‘eles desistiram da democracia’, lembra o ativista. Mas “democracia é o quê?”, reflete, “votar em pessoas que chegam ao poder e, ou não podem, ou não querem, fazer aquilo que supostamente deviam fazer?” Assim, “precisamos de aceitar que não vivemos em democracia e, depois, fazermos com que a democracia se sobreponha ao sistema económico e financeiro”. Para tentar exemplificar a dimensão do que defende, nota que “as emissões de cada português, em média, são entre 4 e 5 toneladas de dióxido de carbono por ano” e que “temos de cortar à volta de 75% das emissões até 2030”; no entanto, só “a refinaria de Sines, que é pequenina a nível mundial, emite num ano mais do que 8 mil portugueses em 80 anos”. O ativista considera que “o nível da escala do problema é muito maior do que aquilo que as pessoas possam imaginar”, e também é muito acima da escala “do que a maioria das pessoas faz no seu dia a dia”. “É uma questão de organização da sociedade” – e é necessário haver medidas vinculativas e vontade política real para se conseguir mudar alguma coisa.
O que fazer em relação às desigualdades e injustiças?
“Um dos grandes desafios prende-se com as diferentes velocidades que os países têm ao nível de desenvolvimento, e nós temos tendência, naquilo que é chamado o Norte Global, a esquecer que o mundo tem muitas realidades”, salienta a consultora da presidência da República Portuguesa, Susana Viseu. “Ainda há uma quantidade enorme de pessoas a viver em situações sem acesso a água potável, sem condições mínimas de habitabilidade, muitas vezes sem acesso a alimentação, que vive em situação de pobreza extrema e, portanto, não podemos esquecer que a grande prioridade têm de ser as pessoas e tem de ser o combate à pobreza.”
Os dados confirmam a gravidade da situação. Mark Maslin, investigador em climatologia e ciências ambientais e entrevistado pelo Gerador para a terceira parte desta grande reportagem, aponta no livro How To Save Our Planet: The Facts que, das 8 mil milhões de pessoas vivas neste momento, 780 milhões vivem com menos de 1,90 dólares por dia e 4,5 mil milhões vivem com menos de 10. Enquanto os americanos gastam menos de 10% do seu rendimento em alimentação, as pessoas mais pobres dos países em desenvolvimento podem gastar até 80%. Produzimos alimentos suficientes para alimentar 11 mil milhões de pessoas e, no entanto, 825 milhões não têm acesso a alimentos suficientes e todos os anos 7 milhões de crianças morrem de fome e de doenças evitáveis. Um oitavo da população mundial, quase mil milhões de pessoas, vive sem eletricidade, há mais de 3,6 mil milhões de pessoas em todo o mundo que não têm condições básicas de saneamento em casa, e 2 mil milhões não têm acesso a água limpa e segura para consumo.
“Mesmo em Portugal temos dois milhões de pobres”, lembra a consultora da presidência da República Portuguesa, “e essa tem de ser, de facto, a grande prioridade – até porque, enquanto existirem pessoas em situação de pobreza e de carência extrema, nunca conseguiremos convencer essas pessoas a poderem abrir-se a causas como a climática. As pessoas não vão perceber do que estamos a falar quando não têm o que comer, quando os filhos não têm escola, quando não têm cuidados de saúde. Há coisas que são básicas e que têm de ser respondidas antes de haver disponibilidade para ouvir esta mensagem”. Tal como Islene Façanha, Susana Viseu também refere que “isto passa muito pela cooperação multilateral, com o Norte, os países mais desenvolvidos, que, no fundo, são os responsáveis históricos pelo planeta ter excedido a sua capacidade de carga e estarmos neste momento numa situação de desequilíbrio do nosso sistema terrestre, a ter a responsabilidade de ajudar os outros países a fazer o seu desenvolvimento de uma forma mais sustentável. E isto faz-se através de financiamento, e faz-se através de transferência de tecnologia e de apoio técnico a esses países”.
Islene Façanha destaca que vai haver, pela primeira vez, uma área dedicada à justiça climática na COP, “um primeiro hub privilegiado para as pessoas convocarem negociadores e países a participarem nessas conversas”. A justiça climática é, “de uma forma muito simples, trazer justiça para esses países que contribuíram pouco para a crise climática em que estamos, e que começaram um trabalho muito forte de advocacia até para a criação do Fundo de Perdas e Danos, que vai ser um dos pontos principais nesta COP28 (e que já teve uma vitória histórica também na COP27)”. E, como aponta João Costa, “as emissões também têm este nível de desigualdade: 50% das emissões de todo o mundo são feitas por 10% da população mais rica, e os 50% da população mais pobre só fazem 10% das emissões”. Um relatório de novembro da Oxfam, intitulado Climate Equality: A planet for the 99%, conclui que os 1% mais ricos são responsáveis por mais emissões do que os 66% mais pobres.
Dentro dos movimentos de ativismo climático – como a Extinction Rebellion, a Scientist Rebellion e a Fridays for Future –, a terminologia Most Affected Peoples and Areas começou a ser utilizada para designar, precisamente, as áreas e os povos mais afetados pelas alterações climáticas, começando a surgir grupos de trabalho MAPA dedicados a estas realidades. Em Portugal, o Encontro Nacional pela Justiça Climática realiza-se anualmente. Este ano decorreu em fevereiro em Coimbra, e para o próximo ano também já está tudo planeado, mas por agora “ainda é surpresa”, diz Islene Façanha.
Os multimilionários e os combustíveis fósseis
“As alterações climáticas são um problema muito específico, e as pessoas tendem a perder-se. O problema são gases com efeito de estufa na atmosfera do planeta em excesso. Não tem nada a ver com árvores, não tem nada a ver com reciclagem, não tem nada a ver com aquilo que as pessoas acham que tem a ver, nem é ambientalismo”, afirma João Costa. Da mesma forma, o ativista esclarece que “o problema das alterações climáticas é uma coisa e o problema ecológico é outro. Interligam-se, comunicam entre si, mas são problemas completamente diferentes”. Por um lado, “as alterações climáticas expõem o problema do sistema em que vivemos, que explora pessoas, animais e planetas sem qualquer tipo de controlo e sem respeitar a capacidade de regeneração do planeta”; por outro, “a questão ecológica existe por causa do extrativismo, da extração de qualquer tipo do que eles chamam recursos”. Ora, este extrativismo desenfreado “só existe porque existe energia a preços artificialmente baratos”, o que, por sua vez, “só é possível porque as empresas de combustíveis fósseis recebem a nível global 13 milhões de dólares por minuto em subsídios públicos”.
Na investigação Survival of the Richest: Escape Fantasies of the Tech Billionaires, Douglas Rushkoff escreve: “Seguindo o exemplo do fundador da Tesla, Elon Musk, a colonizar Marte, de Peter Thiel, da Palantir, a reverter o processo de envelhecimento, ou dos fomentadores de inteligência artificial Sam Altman e Ray Kurzweil a carregarem as suas mentes para supercomputadores, eles estavam a preparar-se para um futuro digital que tinha menos que ver com fazer o mundo um lugar melhor do que transcender completamente a condição humana. A sua riqueza e o privilégio extremos serviram apenas para os tornar obcecados em isolar-se do perigo bem real e presente das alterações climáticas, da subida do nível do mar, das migrações em massa, das pandemias globais, do pânico nativista e do esgotamento de recursos. Para eles, o futuro da tecnologia envolve apenas uma coisa: escapar do resto de nós. Estas pessoas em tempos inundaram o mundo com planos de negócios impensadamente otimistas sobre como a tecnologia poderia beneficiar a sociedade humana. Agora, reduziram o progresso tecnológico a um videojogo em que um deles vence ao encontrar a saída de emergência. Será Bezos a migrar para o espaço, Thiel para o seu complexo na Nova Zelândia ou Zuckerberg para o seu metaverso virtual? E estes multimilionários catastrofistas são os presumíveis vencedores da economia digital – os supostos campeões do cenário empresarial de sobrevivência dos mais aptos que, para começar, está a alimentar a maior parte desta especulação.”
Esta tendência à volta da qual o autor, documentarista e investigador desenvolveu o seu livro (do qual o ensaio original foi incluído no manual da Extinction Rebellion, This Is Not A Drill: An Extinction Rebellion Handbook, publicado em 2019) já se tem vindo a verificar há uns anos: os 1% mais ricos estão desesperadamente a tentar contornar o colapso da civilização humana – e recusam-se a assumir qualquer tipo de responsabilidade. “Eu percebo, e acho que 99% das pessoas do Climáximo também percebe, que as pessoas olhem para a narrativa do coletivo e não a compreendam, que achem que está tudo muito desfasado da realidade e que sintam que somos todos malucos”, diz João Costa. E, no entanto, “os bunkers de luxo já são um mercado. Os multimilionários estão a preparar-se para que zonas do planeta fiquem inabitáveis e eles já saibam para onde ir. Daqui a 20 anos, por exemplo, Portugal vai ter 10 vagas de calor por ano. E depois, o que é que causa revoltas sociais? Falta de comida. Se já existe fome, mesmo não havendo falta de comida, então, imaginemos quando as rotas de produção e distribuição de comida forem afetadas a sério. Quer queiramos quer não, isto vai resultar em duas coisas, que é guerras civis, e noutra coisa que é difícil as pessoas percecionarem, que é os partidos fascistas a crescer em todo lado como resposta às migrações”.
Se com 32,6 milhões de refugiados climáticos estimados para 2022, “já existe disto, imaginemos o que vai acontecer com 2 graus de aquecimento, com números de refugiados umas 10 vezes maiores, ou com 3 graus de aquecimento, com números inimagináveis de refugiados por todo o mundo”. “E se é para falar de injustiças associadas à crise climática, é impossível não falar dos jatos privados”, destaca ainda o ativista. “O número de jatos privados duplicou de 2021 para 2022, 40% das viagens dos jatos privados são feitas com eles vazios (que é quando vão buscar as pessoas), 24% dos voos em 2022 fizeram uma distância entre 250 e 500 quilómetros e, em média, uma viagem de um jato privado é igual às emissões de uma família num ano.”
As empresas de combustíveis fósseis, “quando começaram a perceber que era impossível continuar a negar, começaram a colocar a responsabilidade nas pessoas, e assim nasceu o conceito da pegada de carbono”, mas os números reforçam que “esta é uma questão coletiva e de organização da sociedade”. Quando estas empresas continuam a espalhar mentiras, a atacar quem lhe aponta culpa e a fazer de tudo para manterem a sua atividade, “como é que elas vão abdicar desse poder? E se este negócio está na base de tudo, ou seja, tudo funciona à velocidade que funciona porque existe energia por todo o lado, como é que acabamos com este poder, se este poder influencia tudo?”
Uma indústria que recebe 13 milhões de dólares por minuto “não vai abdicar desses 13 milhões de dólares por minuto”. Ainda para mais, “estas empresas vão querer dominar a indústria das energias renováveis”. Este processo já está a acontecer: “primeiro, vão querer atrasá-la, e depois vão querer dominá-la, para ela não ser descentralizada”. “A coisa boa das energias renováveis é que a energia está em todo o lado, e as pessoas podem ter painéis solares e mini eólicas em casa, e ter as casas muito bem isoladas para não terem de consumir muita energia”, explica João Costa. “Tudo isto é uma questão de poder, e as mudanças, sejam elas quais forem, se não abalarem o poder, não estão a mudar nada.”
Que modelo económico?
“Obviamente que se cruza tudo, e, se estamos a falar alternativas ao capitalismo, estamos a falar de uma outra sociedade, em que o direito à habitação, à saúde, à educação, aos bens básicos, tem de estar antes de tudo o resto. Para as pessoas é muito difícil imaginar uma alternativa ao capitalismo – aliás, foi uma das estratégias de comunicação e de implantação do sistema, a ideia de que não há alternativa e de que as pessoas têm de se cingir ao que existe”, analisa João Costa. O ativista recomenda This Changes Everything: Capitalism vs. the Climate, livro da economista Naomi Klein, por explicar “muito bem porque é que é impossível resolver a crise climática em capitalismo, pelo menos de uma maneira justa”. De uma perspetiva do Acordo de Paris, ‘resolver a crise climática’ implicaria limitar o aquecimento global a 1,5ºC (graus Celsius) acima dos valores pré-industriais, “e tudo indica que isso já não é possível”, tendo em conta os últimos relatórios de avaliação das emissões.
O ativista apresenta vários dos mecanismos que mantêm o sistema a funcionar atualmente. “Existe o mundo da economia, do dinheiro que a gente vê, e mesmo que seja uma coisa inventada por nós, o dinheiro nas nossas contas e nas nossas mãos, é uma coisa minimamente real dentro da ilusão”, começa. “Mas depois existe a bolsa, os mercados financeiros, essas coisas todas. A finança que não passa de uma ilusão, e que é o que manda em tudo. As empresas extrativistas têm os seus ativos, que correspondem maioritariamente ao que estão a explorar: as reservas de combustíveis fósseis. No seu balanço contabilístico, têm aquelas que já estão a ser exploradas (as que são a sua fonte de lucro) e as que ainda não estão a explorar (mas para as quais já têm licenças ou estão a caminho de ter licenças)”, continua. Ora, mas para não ultrapassar os 1,5ºC de aquecimento, “40% das reservas que já estão a ser exploradas têm de ficar debaixo do solo. Em termos contabilísticos, o que isto quer dizer que as empresas vão à falência, já que os mercados financeiros não vão permitir que continuem a existir se abdicarem das reservas que não estão a explorar e, ainda por cima, 40% das que já estão a explorar. Surge logo aqui uma impossibilidade”.
Nos mercados financeiros existem também os seguros e os resseguros. “Quando estamos a falar nisto, estamos a falar de uma coisa super-sombria que são os fundos de investimento, que ninguém sabe quem é que mete lá o dinheiro, e que estão altamente ligados a paraísos fiscais. Já existem produtos no mercado onde grupos de fundos de investimento estão a apostar em que determinado sítio do planeta vai haver seca, e quando nesse determinado sítio do planeta houver seca, eles ganham dinheiro. Então agora vou só fazer um jogo simples: eu tenho um negócio extrativista, seja ele qual for, que é altamente prejudicial para a água num sítio do planeta e que vai causar seca; então, eu não só vou ganhar dinheiro agora, como ainda vou colocar parte do meu lucro em como vai haver seca ali, e depois ainda vou ganhar outra vez com a seca.” João Costa diz que só saber isto já é de uma pessoa se revoltar – “o nível de indignação que nós temos de ter é muito diferente daquele que estamos a ter todos enquanto sociedade”.
Para terminar esta análise económica, João Costa fala “dessa ideia da impossibilidade”. “As pessoas falam na inflação como se fosse uma coisa física. Se saltares para o chão do topo de um prédio e não tiveres nada à tua frente, é impossível não caíres, e isso sim é uma impossibilidade física real. Agora, a inflação? São tudo escolhas. Imprimir dinheiro é uma escolha. É a questão das impossibilidades que não são impossíveis de resolver”. No fundo, na sua opinião, é tudo uma questão de prioridades.
O ‘Simbioceno’, a perceção social e a mudança de comportamentos
Para Islene Façanha, “traduzir a linguagem científica para uma linguagem que as pessoas consigam perceber” é outro dos principais obstáculos. Depois, é complicado “perceber também a melhor forma de tentar passar a mensagem associada a problemas do dia a dia, para as pessoas perceberem que tudo está interligado, e que estamos a passar por um momento de múltiplas crises. Temos guerras, temos um contexto geopolítico muito complicado, e é também preciso perceber como é que a crise climática afeta e agrava essas crises”.
Uma boa parte dos conflitos armados está associada à exploração de recursos e, em particular, à exploração de combustíveis fósseis. “E estes conflitos acontecem também pela crise das nossas economias, do nosso modo de vida como sociedade, que é insustentável, com produções e modos de consumo também insustentáveis, que geram crises sociais, económicas e políticas em vários países, principalmente nos em desenvolvimento, que são aqueles onde muitos dos países desenvolvidos vão explorar os recursos. Então, temos de ter uma visão muito mais macro, abrir os olhos para esses outros aspetos, e ter uma sensibilidade muito mais apurada, porque falta muita empatia no mundo atualmente. Logo, criar empatia e perceber essas realidades também é uma parte importante.”
A especialista da ZERO aponta outro entrave: “se pensarmos na educação da população em geral, acho que as pessoas ainda não estão conscientes da força que têm como população unida. E, por exemplo, marchas, petições, isto ajuda-nos muito na dimensão das políticas públicas, porque podemos usar isto, essa mobilização das pessoas como uma manobra até de chamada de atenção (e para a ação) para os decisores políticos, e eles sentem muito isto como se fosse a temperatura da sociedade, e até das políticas como um todo. Então, a população já está um bocado mais consciente dos problemas ambientais, só que falta um bocado mais de ação, e pressionar mais os governos para tomarem decisões que sejam coerentes”. Aqui, a forma como se comunica é essencial, porque muitas vezes “as pessoas ficam meio paralisadas, sentem-se impotentes, porque acham que não conseguem contribuir muito”.
João Costa comenta que lhe têm perguntado se as ações diretas do Climáximo e dos outros grupos de ativistas não estão a afastar as pessoas. “Primeiro, toda a gente sabe e sente que há um problema de habitação, há um consenso mais do que generalizado, e nada muda. Os consensos nem sempre são catalisadores de mudanças sociais. Podem ajudar, mas não é isso que é determinante. E depois, eu acho graça a essas coisas de dizerem que afastamos as pessoas de uma luta que devia ser delas. É uma conversa muito distópica, porque dizermos que as pessoas se afastam de um problema que lhes diz respeito, só porque outras estão a agir sobre o problema de uma maneira com que elas não concordam… Eu acho que o que a racionalidade podia mudar é que essas pessoas iriam agir só porque achavam que este problema merece ação de uma maneira que acham que é correta”. Relativamente às acusações de radicalismo, acrescenta ainda que, “comparado com o facto de empresas estarem, de uma forma concertada, meticulosa, a planear a morte de milhões de pessoas todos os anos só para manterem o seu poder, isto é radicalismo?”
O ativista reflete que, “quando estamos a falar de pessoas comuns, e de governos e empresas a este nível, eu não percebo qual é a negociação que se pode ter. Porque não há um equilíbrio de forças. Obviamente que tem de haver tentativa de negociação, mas não é racional: se eu não tenho nada que o outro lado queira de mim, logo, não tenho nada para oferecer, porque é que eles vão abdicar do poder que têm, ou de uma parte sequer? Não vão, claro que não”. Avança que já esteve em muitas “reuniões com grupos parlamentares” e que “eles vão sempre engonhar-nos, como têm feito aos professores, aos médicos e a todos os que lutam pela habitação”. E lembra que, “historicamente, foi sempre assim: foram sempre minorias que não deixaram o problema passar impune, até que as pessoas comecem a chegar a um nível em que é impossível prosseguir com o seu quotidiano e comecem a achar que o problema é realmente insuportável”. Num outro nível, “há ainda a camada de pessoas que tem muita ignorância social, falta de compaixão e de empatia, de perceber o que é que nos rodeia, e as teias de interesses que existem”.
Glenn Albrecht, filósofo ambientalista (especialmente focado na relação entre os ecossistemas e a saúde humana), tem vindo a refletir há quase duas décadas sobre as experiências emocionais e psicológicas negativas causadas pelas alterações ambientais. Opondo o ‘Simbioceno’ (um neologismo criado a partir do conceito de simbiose, apontando para um novo período na história da Terra em que existe uma profunda interligação de toda a vida no planeta) como uma alternativa ideal ao Antropoceno, o australiano defende que o mundo está atualmente a viver uma guerra emocional entre as forças de criação e as forças de destruição. Posto isto, criou uma série de conceitos a que chama psychoterratic dis-eases (algo como doenças ‘psicoterráqueas’), que são as que a humanidade está a sofrer neste momento. Ecoanxiety (‘ecoansiedade’), meteoranxiety (ansiedade meteorológica), nature deficit disorder (perturbação de défice de natureza), environmental generational amnesia (amnésia geracional ambiental), ecoparalysis (ecoparalisia), solastalgia, tierratrauma (trauma da Terra), tierrafurie (fúria da Terra) e global dread (pavor global), são alguns dos exemplos.
No livro Earth Emotions: New Words for a New World, o filósofo identifica também vários estados positivos, que contrapõe aos negativos e propõe como essenciais para que a humanidade consiga deixar o Antropoceno, com toda a destruição que a era geológica implica, para trás. Solastalgia tornou-se numa ‘doença’ bem conhecida no mundo académico e no mundo das artes. “A dor ou angústia causada pela perda ou falta de consolo e a sensação de desolação ligada ao estado atual da casa e do território de alguém. É a experiência vivida de mudanças ambientais negativas. É a saudade que se sente quando ainda se está em casa” é como Glenn Albrecht define o termo. O contrário de solastalgia é soliphilia, conceito visto como “o compromisso político com a proteção de lugares de origem amados em todas as escalas, do local ao global, das forças da desolação”.
“Quando falamos destas situações, é normal centramo-nos num loop de frustração, de desespero, de ansiedade, de sentimentos com os quais não estamos habituados a lidar”, admite João Costa. “A nossa reação primária é respirar fundo e ir fazer alguma coisa para esquecer, para desligar a mente e o coração desses sentimentos. E isso é aceitável, mas não vai ajudar a resolver nada. Nós temos, de alguma maneira, coletiva e individualmente, de aceitar esses sentimentos, trabalhá-los, e lidar com a nossa raiva. Porque se não os aceitarmos não vamos agir, e nós temos de agir”. Precisamos de soliphilia, no fundo.
“E isto prende-se com a questão da mudança de comportamentos, que é um outro grande desafio”, acredita Susana Viseu. “Todos nós sabemos a grande dificuldade que é mudar comportamentos. Para além de informação e conhecimentos, é preciso haver também condições para mudar.” Logo, “o mudar comportamentos tem duas componentes: sensibilização, através da transmissão do conhecimento prático e das bases científicas de todas estas questões, evitando os eco-fundamentalismos, evitando os excessos e questionando o greenwashing, e por outro lado, a criação de incentivos num determinado sentido e de penalizações também para quem não cumpra metas e objetivos.”