Quando há três anos visitei Bucareste, ganhei uma impressão pouco favorável acerca da cidade. Pareceu-me cinzenta, e as ruas, os edifícios, as pessoas também eram cinzentas – como se carregassem sobre si o fardo do passado totalitário, 70 anos de ditadura soviética não haviam ficado definitivamente para trás.
Talvez por isso a nova visita que fiz à cidade, nos passados 9 a 12 de Junho, me tenha causado tanta surpresa. Tratou-se de uma visita de campo, no âmbito do projeto New Europe – Cities in Transition, com o objetivo de visitar projetos de base local que promovam a cidade enquanto espaço de inclusão, sustentabilidade e participação. Fomos acolhidos por membros da Zeppelin e, para além da Academia Cidadã, estiveram presentes organizações de Berlim (Mörchenpaprk), de Londres (Paddington Development Trust) e de Amesterdão (Pakhuis de Zwijger).
Três dias chegaram para perceber como Bucareste havia radicalmente mudado durante os últimos três anos. Existe um novo movimento a despontar em toda a cidade, que traz boas ideias e a torna mais democrática. O percurso deu particular atenção à zona sul da cidade. Não só por esta ter sido a área urbana que mais ignorada foi durante as últimas décadas, mas também e sobretudo por ser onde hoje se desenvolve o maior número de iniciativas cidadãs. Aí ainda se encontram os enormes edifícios do tempo da União Soviética, na sua maioria antigas fábricas, hoje abandonados e em degradação. Muitos dos projetos surgidos têm servido para ocupar e dar vida a esses edifícios.
Os edifícios soviéticos afinal servem para alguma coisa
No dia 30 de Outubro de 2015 deu-se um trágico incêndio no Colectiv Nightclub, no qual morreram 64 pessoas. Ocupando uma antiga fábrica de sapatos, a discoteca não dispunha de quaisquer condições de segurança. Na sequência deste sinistro acontecimento realizaram-se vários protestos, com a participação de algumas dezenas de milhares de pessoas, exigindo demissão ministerial e, sobretudo, um maior controlo, por parte do Estado, das condições de segurança dos espaços de utilidade pública. Desde então, as autoridades têm estado realmente atentas, exigindo aos novos espaços um rigoroso cumprimento das normas de segurança.
La Firul Ierbii. Espaço comunitário para a promoção da participação cidadã.
É o caso da iniciativa que visitamos no primeiro dia, La Firul Ierbii, que se traduz, em inglês, para “Grassroots”, e para português (de forma inexata) para “Comunidade”. Ocupando parte de uma antiga fábrica de algodão, este é um espaço comunitário que tem como missão ativar o exercício da cidadania. Através da disponibilização de um espaço de acesso público permanente a toda a comunidade, para a realização de reuniões ou debates públicos, esta iniciativa pretende ainda promover o diálogo entre as instituições governamentais e os cidadãos, bem como uma interação direta entre a sociedade e as empresas, nomeadamente as das indústrias criativas. Pelas óbvias semelhanças que encontrei entre La Firul Ierbii e a Academia Cidadã, fiquei interessada em conhecer as ações já desenvolvidas, mas na verdade o projeto acabava de começar (o espaço estava ainda em obras), tendo apenas planeadas atividades futuras. Uma forte razão para regressar a Bucareste.
Ateliere Fara Frontiere. Reutilização, reciclagem e inserção sociolaboral.
Conhecemos o Ateliere Fara Frontiere (Atelier Sem Fronteiras), que ocupa também uma antiga fábrica. Ao entrar no enorme edifício, a primeira coisa em que reparei foram as estantes metálicas de vários andares, sobrelotadas por material eletrónico e, mais ao fundo, rolos de antigos reclames publicitários de exterior. Só depois pude reparar nas oficinas de trabalho, que se desenvolviam em torno do espaço central, ocupadas por jovens: eles, dedicados à eletrónica, consertavam antigos aparelhos (computadores, ecrãs, telemóveis, impressoras, etc), utilizando peças de uns para os outros – as peças a que já não poderiam dar uso seriam vendidas para reciclagem, os aparelhos eletrónicos que punham a funcionar eram doados a escolas, hospitais, prisões, associações sem fins lucrativos, etc; elas, as raparigas, sentadas em frente a máquinas de costura, transformavam os enormes cartazes de lona em todo o tipo de itens, tais como, bolsas, malas, puffs, etc. Mas o Ateliere Fara Frontiere tornou-se para mim numa ideia genial quando percebi que todas as pessoas que lá trabalhavam estavam, na verdade, inseridas num programa de reabilitação e reintegração social, promovido pelo próprio Ateliere, em parceria com diversas instituições, tais como, prisões, centros de tratamento para toxico-dependentes ou centros educativos. Beneficiando de um contrato de trabalho, e recebendo como salário o ordenado mínimo nacional, cada uma daquelas pessoas desenvolvia competências pessoais e sociais, de relação com os outros e de empregabilidade. Segundo soube, dos que por ali já haviam passado, a maior parte estava de facto reintegrada, desenvolvendo a sua vida de forma autónoma e sem reincidência criminal.
Mudar a cidade através da arte e da inovação
Outra grande ideia visitada foi o Modulab, uma plataforma multidisciplinar que promove a pesquisa e desenvolvimento de novos meios de expressão através da tecnologia. A sua primeira grande criação, em 2009, foi uma projeção holográfica, sendo que em 2012 levou para as ruas a digitalização e impressão 3D, durante o festival “Street Delivery”, em que as pessoas podiam digitalizar as suas caras e imprimir os seus retratos em plástico. No mesmo ano coproduziu o pavilhão romeno na Bienal de Arquitetura de Veneza. Atualmente colabora com instituições públicas e privadas, concebendo objetos interativos, em que a tecnologia e a arte se encontram e se complementam. Para além do trabalho artístico, este coletivo também realiza oficinas, conferências e outros tipos de encontros, promovendo junto do público debates relacionados com os temas da arte e das novas tecnologias. Valeu a pena conhecer a plataforma por dentro, visitar o seu agradável atelier, totalmente planeado e construído pelos próprios membros do Modulab, e conhecer esse grupo de pessoas altamente heterogéneo: artistas, filósofos, engenheiros, designers, ativistas… Falta dizer que o grupo é composto por apenas três pessoas.
Modulab. Pesquisa e ação usando arte e tecnologia.
E quando é a Natureza a mudar a cidade?
Uma das visitas de maior impacto foi a que realizamos ao Parcul Natural Vacaresti. Trata-se de uma área de 184 hectares que se encontra em plena cidade de Bucareste, enorme terreno abandonado desde o tempo do ditador Ceaușescu e onde, nos últimos tempos e de forma espontânea, surgiram uma série de lagos de água pura proveniente de nascentes e, com eles, centenas de espécies de aves, mamíferos, répteis, etc. Isto provocou a curiosidade em muitos especialistas ambientais e hoje em dia existe já pelo menos uma associação, a associação homónima ao parque, que realiza estudos a este ecossistema que mais parece obra milagreira. Há cerca de três meses o governo romeno reconheceu esta área como reserva natural. Hoje, o parque é guardado pela referida associação, ajudada pelas duas famílias que lá habitam. A incrível experiência de realizar um verdadeiro safari através desta espécie de terra encantada acendeu em todos a certeza acerca do imensurável poder da Natureza, e da sua faculdade para se constantemente renovar.
Parcul Natural Vacaresti. Quando a Natureza ganha à industrialização.
Uma questão de oportunidades
Bucareste está em rápido e grande desenvolvimento. Esta cidade, que tem 2 milhões de habitantes, está claramente a beneficiar de uma onda de inovação social e otimismo que tem atravessado a Europa, que surge em resposta à crise social e financeira dos últimos anos. A economia da Roménia é das que na Europa mais rapidamente cresce (4,2%), com a taxa de desemprego continuamente a descer, situando-se atualmente nos 6,4%. É um país em que aparentemente a corrupção está a ser combatida e onde as pessoas parecem estar a ter uma crescente participação ativa na sociedade. Também o Estado e as instituições públicas e privadas (onde se inclui, por o exemplo, o Banco da Transilvânia) têm interesse nessa participação, pois disponibilizam todo o tipo de financiamentos para apoiar iniciativas de promoção de cidadania. É um país que também tem vindo a atrair investidores estrangeiros.
Por outro lado, 70% da população rural da Roménia vive abaixo do limiar da pobreza e mais de metade da população infantil geral (51%) estão em risco de pobreza. Os principais motivos apontados são a falta de acesso, por parte das famílias, a serviços sociais básicos e universais, tais como, saúde, habitação ou educação. Em 1995 foi aprovada no parlamento uma lei que permitia que edifícios do Estado voltassem para as famílias que os possuíam antes da ditadura comunista. Isto fez com que, só em Bucareste, mais de 50.000 pessoas que viviam em habitação social fossem atiradas para a rua. Em 2013, ainda cerca de 1800 famílias procuravam um local para viver. Em 2009 foi pedido um empréstimo ao FMI de 20 biliões de euros, para recapitalizar o Banco Nacional da Roménia.
Resumindo: existe hoje uma (pequena) fatia da sociedade romena, sobretudo urbana e com estudos superiores, que se tem envolvido cada vez mais na vida pública, procurando melhorar não só a sua, mas também as vidas dos outros em volta; por outro lado, existe uma (grande) fatia da sociedade romena, a quem as oportunidades continuam não a chegar, sofrendo de pobreza, analfabetismo, desemprego, exclusão. Existe um fosso a separar as duas. O desafio será em destruir este fosso, e em garantir que os bons exemplos que visitei durante os três dias possam ser replicados com cada vez mais frequência.
Fotos e texto: Joana Dias.