Porque nos revoltamos quando nos bloqueiam a estrada?


As reações aos protestos das ativistas do Climáximo e da Greve Climática Estudantil deviam servir para refletirmos sobre a vida que levamos e o sistema que nos organiza. 

Uma das reações mais divulgadas é de uma pessoa que, indignada, disse “Tenho que trabalhar para alimentar os meus filhos”. Tendo em conta que é isso que a maioria da população faz, facilmente qualquer pessoa se identifica com tal desabafo. Será que este tipo de reacção resulta de um grande gosto pelo seu trabalho e pelo prazer de vender o seu tempo para conseguir alimentar os filhos? Ou há aqui uma frustração escondida, que nos afecta a praticamente todos, pela vida quotidiana e custosa que nos obriga a trocar tempo (que podia ser passado com os tais filhos) por dinheiro para os, pelo menos, alimentar? 

Existem também reações a defender “outras formas de ação”. Primeiro, já foram feitas e continuam a acontecer outras formas de ação, quase sempre criticadas ou ignoradas. Nenhuma serve. Segundo, há conversas, debates, assembleias, formações e outras iniciativas sobre clima e outros temas, como habitação, violência policial, racismo, desigualdade, salários, democracia e alternativas ao nosso modo de vida. A questão é:  

Quantos de nós, “que temos de alimentar os nossos filhos”, aparecem? 

Não temos tempo. Não temos disponibilidade mental. Não conseguimos pensar em nada que seja fora da nossa vida. Este é um dos problemas do sistema que construímos para nos organizar. A democracia representativa serve exatamente para nos libertar desta responsabilidade de pensar, questionar e participar politicamente. Passamos a responsabilidade e libertamos esse peso dos nossos ombros, o de procurar e lutar coletivamente por alternativas. 

O importante é termos tempo para trocar por dinheiro. Pelo crescimento. Pela criação de riqueza. Acabamos a libertar essa pressão nos nossos iguais. No funcionário público, no colega, no vizinho, no ativista. 

Eu também troco tempo por dinheiro. Tenho um filho para alimentar, contas para pagar e merdices de privilegiado, como a música e a bola enquanto bebo uns copos como escape. Resta-me algum tempo, pouco, que dedico a ser uma pessoa participativa na vida coletiva. Podia, devia e quero fazer muito mais. 

Por isso agradeço a quem se consegue libertar das amarras do tempo/dinheiro. A quem consegue dar mais pelos outros do que por si próprio. São estes que deixam as sementes. São estes que um dia mais tarde, quando nos tocar a sério, nós vamos ouvir. 

Quando estiveram parados no trânsito porque alguém bloqueou a estrada, aproveitem esse tempo. Respirem e libertem-se momentaneamente. 

Querem apenas trabalhar e alimentar os vossos filhos para que eles se safem neste mundo em que vivemos como tendo atingido o “fim da história”? Ou faz mais sentido alimentarmos os nossos filhos e alimentarmos a transformação do mundo, de forma a lhes deixarmos um planeta habitável, uma vida com mais tempo, saudável, com propósito e mais justa para todos? 

Não pode ser suficiente fazermos dos nossos filhos uns sobreviventes, temos de lhes deixar a semente de que podemos transformar, não só a nossa vida, mas a de todos.  

E isso só se faz com tempo, participação e com solidariedade colectiva. 

Os nossos filhos vão agradecer, acreditem. 

Por: João Sousa, Membro da Academia Cidadã

 

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